"Ai ai!"Autoridades presentes, professores, pais, colegas formandos e amigos, bom dia.
Sempre que vamos a uma colação de grau, já esperamos um evento meio formal, com um tanto de discursos que às vezes fazem um ou outro pai pescar ali no meio da audiência – nada, aliás, que nós não tenhamos feito em sala, fosse Literatura Brasileira ou Teoria do Texto. Mas sempre temos um discurso mais descontraído que é, justamente, aquele que vai falar da turma, contar histórias nem sempre engraçadas ou que não fazem o menor sentido, mas que deixam todos com um pouco de vergonha e até fazem brotar uma lágrima ou outra aqui e ali. Foi isso que eu vim fazer hoje, e ao mesmo tempo sinto que fiquei com a parte mais legal e a mais difícil também, uma peculiaridade da Letras. Falar dos professores, com gente tão boa como temos, fica até meio fácil, só tendo que tomar cuidado pra não babar demais no ovo do sujeito e dar a impressão que somos apaixonados por alguns deles. Falar dos pais também não tem muito erro, mas daí eu já estaria entrando nos discursos dos outros, e aí vai ter gente dormindo mesmo, porque discurso repetido não dá.
O porquê de eu estar falando isso é justamente a falta desse sentido de turma com que a Letras nos presenteia ao longo dos 5 anos – prova disso é que não somos a Letras 2002, mas acho que poderíamos dizer a “Letras ’99 a ‘03”, tamanha a salada de anos a gente tem aqui hoje. Infelizmente, não posso dizer alguma coisa sobre cada uma das pessoas aqui presentes, por mais que essa fosse a minha vontade, e por isso mesmo gostaria de estender essa homenagem não simplesmente aos colegas, ou mesmo aos formandos, mas aos amigos, sejam eles quem forem. Nossos pais nos apóiam, os mestres nos guiam (e às vezes nos reprovam), mas quem realmente está lá quando a gente precisa de um jeito que os pais não podem ajudar são nossos amigos. Você não chega chorando por conta de ex para seus pais numa véspera de prova, crente que vai ter um ombro amigo pra te consolar, quando na verdade seu amigo tem intimidade o suficiente pra te mandar pra um lugar onde não bate sol, sentar e fazer a prova. Ou mesmo quando você passa um pouco da conta numa festa, é seu amigo que vai parar de beber pra te ajudar (e isso eu sei bem) e depois vai tirar com a sua cara, mas sem ressentimentos, ou sermões, porque sabe que quando chegar a vez dele você vai estar lá. E isso tudo faz parte da vida universitária porque ela, mais do que qualquer outra fase, te ensina não só a fazer análise literária (o terror do aluno da Letras, ainda mais no primeiro ano) ou a montar árvores de análise sintática que vão ser o pesadelo de algum aluno de colegial. A gente apanha, aprende a economizar dinheiro, a cozinhar, vê que algumas coisas que seus pais dizem não fazem o menor sentido, e isso em português bem claro, e tudo isso sempre com os amigos conosco, seja nos ajudando, seja nos dando a chance de ajudar e aprender, seja descascando um mesmo abacaxi a quatro mãos e alguns palavrões. A natureza priva algumas pessoas de ter, ou melhor, de termos irmãos, e isso pode até parecer um privilégio quando você pensa no quarto que é só seu, mas a vida se encarrega de te dar alguns. Geralmente poucos, mas bons. Ah, sim: dizer “termos” para “algumas pessoas” é silepse de pessoa, então está certo, antes que digam que um sujeito da Letras cometeu uma gafe no discurso.
Mas do jeito que eu estou indo parece que não tem disso, dessa amizade toda, na Letras, o que seria uma mentira. Minha mãe sempre me disse que seria na faculdade que eu faria os amigos que eu levaria comigo para a vida, e ela tem razão. Do mesmo modo como fiz amigos no colegial que tenho o prazer de ver aqui hoje, sei que fiz amigos na faculdade que vou ver em outras ocasiões tão especiais quanto esta de hoje, por menos que pareçam. Afinal de contas, sentar num boteco pra bater papo e tomar cerveja não tem o glamour de uma formatura, mas ainda assim vai ser um daqueles momentos especiais pra quem estiver lá. E não precisa nem ser o Rei das Batidas depois a aula, ou mesmo durante ela. Tivemos, sim, momentos que uniram os alunos, e em que nos mostramos amigos. Quem não se lembra do desespero antes de uma prova de Estudos Clássicos na biblioteca? Prova de Latim sem dicionário, em duplas de oito ou dez? Com o perdão da palavra, quando a água batia na bunda, a gente descobria que conhecia e gostava mais das pessoas do que achávamos, e isso muitas vezes não se restringia a provas ou trabalhos. Trabalhos estes, aliás, que muitas vezes pegávamos emprestados para dar uma olhada e tirar algumas idéias, mas isso SEMPRE depois que já tínhamos entregue os nossos, é claro, nada de cópia. Imaginem, alunos da USP fazendo isso? Nunca! Muitas vezes, um bandeijão (para os mais corajosos) ou mesmo uma matada de aula pra bater papo já mostravam que há, sim, camaradagem e amizade na Letras, e que isso podia sair do nosso prédio. Pode ir até ao Rio de Janeiro, ou até o buraco do Metrô.
Posso falar por experiência pessoal que eu tenho, sim, gente aqui em quem eu confio e de quem eu gosto muito. A gente vê essa importância que temos para alguém talvez da forma mais dolorosa, magoando e sendo magoado, mas isso faz parte de todo o aprendizado que temos juntamente com as tais análises e as línguas. Podemos ver que temos com quem nos abrir e matar aula pra jogar truco, conversar sobre literatura e problemas com o namorado ou namorada, dividir alegrias e incertezas, acadêmicas ou não, além dos tais trabalhos sobre que já falei. E ter feito parte da comissão de formatura, apesar de todo o trabalho que nos deu, valeu principalmente por isso: por conhecer essas pessoas, que poderiam ter passado batidas, sem que parássemos pra trocar um “oi” e acabar conversando sobre o futuro, ou até mesmo rolando no barranco levemente alterados. Confesso que o sentimento que pairou no ar pra mim foi muito bem expresso por uma colega, dizendo “como que a gente não se conheceu antes?”. Pois é, foi preciso a gente quebrar a cabeça, pagar mico entrando de sala em sala, ter dor de cabeça depois de reuniões de 5 horas sem almoço e passar dias respondendo e-mail pra poder ouvir uma dessas. Digo mais: mesmo essa parte chata da coisa toda foi amenizada por saber que estava entre os bons amigos que fiz na comissão, mesmo com um bate-boca ou outro.
O que mais me alegra de estar aqui hoje, além de ter uma visão de que a faculdade acabou,- e que por isso podemos ir para celas especiais antes do julgamento -, por mais que a gente goste dela e o suspense vai até o diploma chegar, é ver todo mundo junto. Acho que é a primeira vez, aliás, que conseguimos colocar todos os formandos juntos, e olha que é sábado de manhã. E ver esse pessoal todo me faz ver, finalmente, uma turma de formandos, que lutou por anos até chegar aqui. “Lutou”, porque pegar ônibus lotado, encarar sala entupida de gente sem ventilação, livro que fazia a gente espirrar de tão antigo, encarar fila no xérox, fila na Seção de Alunos e agora há pouco fila até pra beca, não são coisas pra qualquer um. Mas, estamos aqui, e por isso eu dou os parabéns para todos nós, porque passamos por cima de muita coisa, começando talvez até em casa, e seguindo pela sociedade e pelo mercado, mas eu não vou entrar num discurso que seria rotulado como algo “típico da FFLCH”. O fato é que chegamos aqui graças, em grande parte, a essas pessoas, em especial a todos aqueles que compartilharam da mesma via crucis.
Gostaria de fechar com uma citação. Tentei fugir do lugar comum de achar algum escritor, como se espera da nossa faculdade, mas mesmo assim foi difícil, então acabei por seguir à risca minha sina de Letras: fecho com um escritor, Albert Camus, argelino ganhador do prêmio Nobel. Cai como uma luva e vocês, colegas, amigos, saibam que eu as digo com sinceridade, pois ela reflete muito bem aquilo por que passamos. Diz ele:
“Não caminhe na minha frente, eu não posso seguir. Não caminhe atrás de mim, eu não posso conduzir. Apenas caminhe ao meu lado, e seja meu amigo”.
Espero que eu tenha sido para vocês o que eu sei que vocês foram pra mim, e por isso eu os agradeço de coração, com a esperança de ainda possamos caminhar juntos bastante.
Obrigado.